Quando se trata de recuperação de créditos, a figura da pessoa jurídica pode ser comparada a um véu que tenta impedir que as dívidas por ela contraídas atinjam o patrimônio de seus sócios. Só que esse véu não é inviolável e, por vezes, acaba sendo rompido em processos contra devedores contumazes.
Esse caminho processual, contudo, é longo, podendo durar alguns anos. A comparação com o véu é de autoria da advogada Ana Lívia Dias, do escritório Briganti Advogados, que recorre a ela para tentar mostrar o tamanho do impacto que pode ser causado pela consolidação do Sistema Nacional de Investigação Patrimonial e Recuperação de Ativos (Sniper), ferramenta digital que tem a missão de centralizar e agilizar a busca de ativos e patrimônios em diversas bases de dados.
“O maior gargalo processual que temos hoje no Brasil é a fase de execução de dívidas, justamente pela eficácia de devedores contumazes para esconder bens”, explica Ana Lívia.
E a avaliação da advogada não é um exagero. Conforme dados do relatório Justiça em Números, do CNJ, existem quase 40 milhões de processos com execução pendente, o que corresponde a mais da metade (58%) do total de processos pendentes (75 milhões).
Em média, a fase de execução de um processo dura quatro anos e sete meses, quase o triplo da fase de conhecimento (um ano e sete meses). A taxa de congestionamento durante a execução é de 84% — ou seja, são processos que ficam aguardando bens, ativos ou direitos passíveis de constrição judicial para o cumprimento da sentença.
Desenvolvida pelo Conselho Nacional de Justiça no âmbito do programa Justiça 4.0, a ferramenta deve agilizar muito a recuperação de créditos. Quando ela foi lançada, em agosto deste ano, o então presidente do CNJ, ministro Luiz Fux, exaltou suas virtudes.
“É o caça-fantasmas de bens, que passa a satisfazer não só as execuções, mas também a recuperação de ativos decorrentes dos crimes de corrupção e lavagem de dinheiro.”
Conforme as informações mais recentes do CNJ, 68 tribunais já aderiram à ferramenta, o que representa 75% do total. O acervo alcançado pelo Sniper já chega a 22,8 milhões de processos ativos, ou 34% das ações eletrônicas em tramitação no país.
Segundo Ana Lívia, para se obter um resultado parecido com o que o Sniper pode proporcionar, é necessário que o escritório responsável pela execução dos créditos contrate uma consultoria especializada em investigação patrimonial, solução pouco usada por ser cara.
Como funciona?
O Sniper permite com um único clique o cruzamento de dados de diferentes bases para estabelecer vínculos entre pessoas físicas e jurídicas de forma visual — no formato de gráficos —, o que permite ao magistrado do processo de execução identificar fraudes de modo muito mais simples.
Entre as bases de dados integradas ao Sniper estão as de Receita Federal, Tribunal Superior Eleitoral, Controladoria-Geral da União, Agência Nacional de Aviação Civil, Tribunal Marítimo e CNJ. Estão em processo de integração Sistema de Informações ao Judiciário (Infojud) e Sistema de Buscas de Ativos do Poder Judiciário (Sisbajud). Esses últimos ficarão disponíveis apenas no modo sigiloso da ferramenta.
Gabriel Tonelli Pimenta, especialista em Direito Civil e advogado no GVM Advogados, defende que é fundamental que a consolidação da ferramenta seja acompanhada de uma ampliação da base de dados integrada, de modo a alcançar, por exemplo, cartórios e juntas comerciais espalhados pelo país.
“Também é ideal que a ferramenta seja apta a lançar imediatamente ordens de restrição, uma vez encontrados bens, mediante prévia autorização judicial, dificultando, assim, a ocultação.”
Gato e rato
Benito Conde, especialista em Direito Bancário e Recuperação de Créditos e sócio da banca Montezuma e Conde Advogados Associados, explica que o Sniper ataca o principal problema enfrentado na recuperação: a ocultação patrimonial feita pelos devedores.
“Grande parte dos devedores, ao saberem da existência de alguma ação judicial cujo resultado esperado seja a derrota, já iniciam a transmissão de patrimônio para outras pessoas físicas e jurídicas na clara tentativa de fraudar a execução. Com a ferramenta Sniper, tais atitudes poderão ainda ocorrer, porém serão dificultadas em razão da possibilidade de verificação das relações do devedor com outras pessoas físicas e jurídicas.”.
Renata Cavalcanti, do escritório Rayes e Fagundes, por sua vez, defende que, para haver o uso certeiro do Sniper, é importante que os juízes sejam treinados para extrair o melhor que a ferramenta tem a oferecer e sejam orientados a acolher os pedidos dos credores de uso da plataforma.
“Na esfera cível já encontramos alguns juízes indeferindo pedido por entender tratar-se de medida extrema. Para evitar esse tipo de decisão, o TJ-SP, por exemplo, divulgou diretrizes para magistrados, dirigentes e servidores das unidades judiciais do estado incentivando o uso da ferramenta.”
Já Renato Leopoldo e Silva, head de Contencioso Empresarial Cível, Recuperação de Empresas e Arbitragem do escritório Donelli Abreu Sodré e Nicolai Advogados, lembra que a ocultação de bens fere o princípio da cooperação processual, visto que se torna um meio de procrastinar a execução, de modo a torná-la infrutífera.
“O Sniper surge para concretizar e dar maior eficiência aos mecanismos atuais, vez que são inúmeras as possibilidades que demonstram que o aparato pode ser essencial para os processos em execução.”
Água no chope?
Arthur Mendes Lobo, professor adjunto de Direito Empresarial da UFPR e sócio do Wambier, Yamasaki, Bevervanço e Lobo Advogados, alerta que boa parte dos avanços da ferramenta está ameaçado pelo Projeto de Lei 69/2014, de autoria do deputado Bruno Araújo (PSDB).
Conforme o texto, o credor que pedir a desconsideração da personalidade jurídica para executar dívidas deverá indicar, necessária e objetivamente, em requerimento específico, quais os atos praticados pelo devedor que ensejam a responsabilização, na forma da lei específica. O mesmo deve fazer o Ministério Público nos casos em que lhe couber intervir no processo.
“Essa indicação não é fácil, nem simples. Porque muitas vezes esses atos são confidenciais, feitos em âmbito particular, com cláusula de sigilo ou de maneira irregular, sem deixar rastros para o credor. Significa dizer que se o credor não souber, ou não tiver de antemão elementos que identifiquem os atos individualizados dos sujeitos envolvidos em fraude ou simulação, não poderá sequer requerer a desconsideração da personalidade jurídica.”
Segundo Lobo, outro problema do PL é a neutralização da jogada mais fatal do Sniper, o elemento-surpresa. “O projeto exige prévio contraditório, para que eles (devedores) saibam de antemão que seus bens estão sendo alvo do ataque.”
Evolução
A ferramenta Sniper é a mais recente “arma” do Poder Judiciário para combater a ação fraudulenta de devedores contumazes, mas é preciso ressaltar que os meios para identificação de valores e patrimônio oculto já vêm sendo aperfeiçoados nos últimos anos.
Um dos grandes avanços foi a ferramenta Teimosinha, do Sistema de Busca de Ativos do Poder Judiciário (SisbaJud), que permite que o patrimônio dos executados seja rastreado pelo período de um mês. O TJ-SP foi além e passou a permitir, por decisão da 32ª Câmara de Direito Privado, o uso da ferramenta de forma permanente e sem limites, até a satisfação do crédito.
Os especialistas consultados pela ConJur são unânimes em reconhecer a evolução das ferramentas para recuperação dos ativos do Judiciário. “Mais importante do que qualquer ferramenta de modernização, porém, é o incentivo do CNJ aos métodos alternativos de resolução de conflitos, visando à solução amigável das demandas, promovendo e estimulando a realização de acordos para descongestionar o Judiciário”, exalta Leopoldo e Silva.
Revista Consultor Jurídico, 27 de novembro de 2022, 8h46
https://www.conjur.com.br/2022-nov-27/sniper-aposta-judiciario-agilizar-recuperacao-ativos