Créditos tributários e a nova Lei de Falências e Recuperações

Em tempos de uma ainda incipiente retomada da economia brasileira, que tenta se reerguer depois do baque experimentado com a disseminação da pandemia do novo coronavírus, ganha força o debate acerca da renovação da lei nº 11.101/2005 (“Lei de Falências e Recuperações”), com a aprovação, pela Câmara dos Deputados, do Projeto de Lei nº 6.229/2005 (“Projeto”), que reformula e moderniza a referida lei e a legislação correlata.

O Projeto, aprovado no final do mês de agosto de 2020, será agora analisado pelo Senado Federal. Vale ressaltar que, ao longo dos últimos anos, foram apensadas ao Projeto outras tentativas de mudança da legislação de falências e recuperações, notoriamente o Projeto de Lei nº 10.220/2018, de autoria do Poder Executivo, no governo do então Presidente Michel Temer.

A seguir, comentamos os principais aspectos tributários do Projeto. Vale destacar que todos os tópicos discutidos constam da atual redação do Projeto e deverão ser acompanhados conforme sua tramitação no Congresso Nacional.

Suspensão de execuções fiscais durante a falência

A versão original do Projeto previa relevante alteração na Lei de Falências e Recuperações, ao submeter ao procedimento recuperacional também os créditos de natureza tributária, suspendendo-se as execuções fiscais contra o devedor. Com efeito, até hoje, mesmo com o deferimento da recuperação, continuam correndo normalmente as execuções fiscais, não ficando os créditos tributários sujeitos à recuperação.

Referida modificação sistêmica não foi levada adiante no Projeto aprovado pela Câmara. Não obstante, o Projeto prevê que, decretada a falência, ficarão suspensas as execuções fiscais contra o devedor, sem prejuízo de seu prosseguimento contra corresponsáveis.

Substituição de atos de constrição patrimonial

O Projeto ajusta a regra de não-suspensão das execuções fiscais no curso da recuperação judicial, para permitir ao juízo recuperacional a substituição de atos de constrição sobre bens essenciais à manutenção da atividade empresarial. A medida parece uma alternativa adequada para equilibrar a capacidade de geração de receita (princípio da preservação da empresa) com o interesse creditório do fisco, o qual, muito embora não se submeta ao procedimento recuperacional, tampouco deve ignorá-lo.

Ganho de capital na alienação de ativos

O mesmo fundamento parece nortear a regra, prevista no Projeto, que permite ao devedor parcelar, com atualização monetária, o imposto de renda e a contribuição social sobre o lucro (“IRPJ/CSLL”) incidentes sobre ganhos de capital na venda de ativos.

Ainda sobre a tributação diferenciada sobre o ganho de capital percebido por empresas em recuperação judicial, o Projeto insere inovadora previsão de aproveitamento de prejuízos fiscais relativos ao IRPJ e à CSLL, que poderão ser usados para abater até a totalidade dos lucros obtidos pela sociedade devedora na alienação de filiais, unidades produtivas e bens do ativo, inclusive do ativo permanente.

Como se sabe, até 30% dos lucros auferidos por pessoas jurídicas sujeitas ao regime de apuração do lucro real podem, em cada ano-calendário, ser compensados com prejuízos fiscais acumulados – a conhecida “trava dos trinta por cento”, a qual sempre foi objeto de controvérsias, pelo fato de possivelmente gerar uma falsa impressão de acréscimo patrimonial para as empresas. Nesse contexto, é de se louvar a iniciativa do Projeto de afastar o limite de compensação de 30% dos lucros do período, que poderá beneficiar os contribuintes sujeitos à apuração pelo lucro real.

Neutralidade tributária sobre renegociação de dívidas

Um dos mecanismos essenciais à recuperação judicial diz respeito à renegociação de dívidas da sociedade devedora, que pode implicar a redução ou eliminação de passivos (“haircut”) e, por consequência, o reconhecimento contábil de receitas. Via de regra, a renegociação ou perdão de dívidas enseja a incidência das contribuições ao PIS e para o financiamento da seguridade social (“PIS/COFINS”) sobre as receitas geradas. O Projeto prevê, contudo, que as receitas decorrentes da renegociação no processo de recuperação judicial não serão computadas na base de cálculo de PIS/COFINS.

Ademais, embora tais receitas devam compor a apuração do IRPJ/CSLL, a parcela dos lucros correspondente a elas também não ficará sujeita ao limite de 30% para compensação de prejuízos fiscais, sendo, ainda, dedutíveis as despesas com obrigações assumidas no plano de recuperação.

Parcelamento de débitos fiscais

Outra bem-vinda medida prevista no Projeto, alinhada a outras recentes inovações na legislação tributária, diz respeito à possibilidade de o devedor em recuperação judicial parcelar seus débitos para com a Fazenda Nacional (inclusive de natureza não-tributária) em até 120 (cento e vinte) parcelas (144 para microempresas e empresas de pequeno porte), atendidos alguns patamares mínimos – por exemplo, em parcelas de 0,5% do valor total da dívida até a 12ª parcela. A adesão se dará por termo de compromisso.

Em relação a débitos administrados pela Receita Federal do Brasil (“RFB”), o Projeto permite a liquidação de até 30% com o abatimento de prejuízos fiscais acumulados, parcelando-se o saldo restante em até 84 (oitenta e quatro) vezes.

É de se notar, por outro lado, que se o devedor optar por incluir débitos em discussão administrativa ou judicial nessas modalidades de parcelamento, deverá comprovar a desistência de impugnações, recursos e ações judiciais, conforme o caso, bem como a renúncia quanto às alegações de direito correspondentes. Tal como se dá nas modalidades habituais de parcelamento (“REFIS” e outros), a medida é bastante questionável, por forçar o contribuinte a abandonar questionamentos possivelmente legítimos e válidos.

Há disciplina específica para o parcelamento, ainda, para tributos retidos na fonte e para o imposto sobre operações financeiras (“IOF”).

Lembramos, finalmente, que o parcelamento é hipótese de suspensão do crédito tributário, nos termos do CTN, de modo que, a prevalecer essa previsão do Projeto, deverão ser suspensas as execuções fiscais em curso contra o devedor.

Transação de débitos tributários inscritos em dívida ativa

Por fim, destacamos a inovadora permissão prevista no Projeto para que o devedor em recuperação judicial apresente proposta de transação tributária à Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (“PGFN”), medida alinhada com os recentes avanços na disciplina da transação em matéria tributária, relegada por décadas, conquanto autorizada pelo Código Tributário Nacional (“CTN”). O Projeto, inclusive, remete às normas sobre o assunto estabelecidas pela Lei nº 13.988/2020.

Nesse sentido, segundo o Projeto, a empresa devedora poderá propor a liquidação de seus débitos fiscais inscritos em dívida ativa em até 120 (cento e vinte) meses, com limite máximo de 70% (setenta por cento) de reduções. A apresentação da proposta suspenderá o andamento das execuções fiscais.

Para a admissibilidade da proposta, a PGFN deverá levar em consideração princípios como o da isonomia; capacidade contributiva; preservação da atividade empresarial; razoável duração dos processos e outros, além de se pautar por parâmetros como a recuperabilidade do crédito; e proporção entre passivo fiscal e total das dívidas da sociedade.

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Conclusão. Há muito pela frente até que o Projeto seja de fato aprovado e convertido em lei; até lá, diversas medidas podem ser alteradas ou excluídas, podendo outras ser acrescidas à proposta. De todo modo, o debate quanto à reformulação do atual regime jurídico das recuperações e falências e sobre o tratamento conferido a passivos fiscais já se encontra bastante amadurecido, sendo promissores os avanços que já revela o Projeto aprovado pela Câmara dos Deputados. Se finalmente aprovado e convertido em lei, o Projeto poderá representar uma ampla modernização da legislação recuperacional e falimentar, tornando a relação entre fisco e contribuinte mais adequada ao princípio da preservação da empresa, sem prejuízo à proteção e eficácia na recuperação dos créditos fazendários, mediante a implementação de mecanismos já consagrados na legislação fiscal (como os parcelamentos) e outros mais modernos (caso da transação tributária).

 

Contato: Arthur Barreto (arthur.barreto@dsalaw.com.br)

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