Objeto de repercussão geral, a discussão que circundou o julgamento pelo Supremo Tribunal Federal do agravo em recurso extraordinário nº 843.989/PR¹ era de interesse não apenas de políticos e ex-gestores, mas à sociedade como um todo.

O cerne do debate girou em torno da definição a respeito da (ir)retroatividade das novas alterações trazidas pela nº Lei 14.230/2021², especialmente no que toca (i) à exigência da caraterização do elemento subjetivo do tipo (dolo) para configuração dos atos de improbidade administrativa anteriores ao advento da nova redação normativa; e (ii) aos novos prazos prescricionais e da recém-instituída prescrição intercorrente. Isto é, buscava-se saber se as novas regras se aplicavam também aos procedimentos já em curso quando do advento da lei, àqueles com coisa julgada e àqueles já em sede de execução.

A Procuradoria-geral da República defendia que a aplicação retroativa das normas afetaria a segurança jurídica, no entanto, não poderíamos discordar mais do argumento.

Ao fim e ao cabo, a Suprema Corte entendeu que a retroatividade das normas apenas seria possível nos casos, em que imputada a modalidade culposa, já em curso. Quanto à prescrição, prevaleceu a posição de que não há efeito retroativo, nem mesmo para os procedimentos em curso.

Todavia, entendemos que o posicionamento adotado pela Corte está equivocado.

A bem da verdade, a interpretação mais adequada para ambas as questões listadas nos itens (i) e (ii) acima decorre inexoravelmente na natureza jurídica das disposições que repreendem os atos ímprobos.

Muito embora o Ministro ALEXANDRE DE MORAIS tenha sustentado, em seu voto, que a Constituição Federal estipularia a sua natureza civil, ao afirmar que “os atos de improbidade administrativa importarão a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível” (cf. § 4º do inciso XXII do art. 37 da CR), o que a Magna Carta, de fato, faz é prever âmbitos de responsabilidade independentes, autônomos.

Além disso, sob nosso ponto de vista, é inegável o cariz sancionador da norma de tipificação do ato de improbidade administrativa, cujo enquadramento se dá na seara do Direito Administrativo Sancionador, de matriz genética similar, interseccional, ao direito penal, demandando, por conseguinte, interpretação equivalente. O próprio Ministro reconheceu, de forma tácita, a semelhança ao afirmar que “a improbidade é ilegalidade tipificada e qualificada pelo elemento subjetivo da conduta do agente. A ilegitimidade do ato, se houver, estará sujeita a sanção de outra natureza, estranha ao âmbito da ação de improbidade³” , assim como quando afastou a responsabilidade objetiva, comum aos ilícitos cíveis. Nesse caso, portanto, inafastável a retroatividade da lei mais benéfica, como demanda o inciso XL do art. 5º da CR[4].

Por outro lado, no que tange à exclusão da modalidade culposa, entendemos que a interpretação deveria se dar à luz das regras que vigem quanto ao instituto da abolitio criminis. Nesse sentido, o Pacto de San José da Costa Rica, norma de cariz supralegal, dita que “se depois da perpetração do delito a lei dispuser a imposição de pena mais leve, o delinquente será por isso beneficiado”, que dirá quando extirpada (art. 9º, CADH)[5].

Como se vê, esse seria o único entendimento cabível à luz dos princípios e garantias constitucionais, especialmente do axioma da isonomia e da segurança jurídica.

A despeito da divergência quanto à natureza jurídica, o Ministro ALEXANDRE DE MORAIS votou pela retroação da norma em todos os casos, à exceção daqueles em que já haja o trânsito em julgado e daqueles com execução das penas já em curso. O fundamento para este óbice seria a coisa julgada, protegida constitucionalmente.

Nesse ponto, entendemos assistir razão ao Ministro ANDRÉ MENDONÇA, para quem a retroatividade da norma alcança inclusive a coisa julgada, em especial em virtude de uma ponderação de valores das normas constitucionais – precipuamente a igualdade e segurança jurídica, que, a sua vez, engloba a proteção da confiança, ínsita no Estado de direito –, de igual hierarquia.

O mesmo pode ser dito quanto à retroatividade das novas disposições que regem a prescrição no campo da improbidade administrativa. Isso porque, ao preverem uma causa extintiva da punibilidade, essas normas possuem natureza jurídica mista, isto é, de caráter processual e material-penal. Assim sendo, sua retroação seria impositiva e, ainda que não fosse reconhecida de ofício, poderia sê-lo em sede de ação rescisória, com fulcro no art. 966, inciso V, do Código de Processo Civil.

Ora, não se nega a relevância da Lei de improbidade administrativa e, sobretudo, da necessidade de se combater a corrupção, a ilegalidade e a imoralidade no contexto do Poder Público, porém, isto deve ser feito observando-se as regras do jogo, as quais não podem (nem devem) ser alteradas consoante a conveniência e/ou clamor público.

Certo é que o reconhecimento da retroatividade destes institutos ainda permitiria não apenas que os Tribunais se dedicassem aos casos verdadeiramente graves, em que há dolo na conduta dos agentes e real prejuízo ao erário público, mas também – com a redução no número de demandas que assoberbam o Estado – propiciaria um julgamento mais célere dos casos.

*Thiago Nicolai é advogado criminalista especializado em Direito Penal Empresarial e sócio do DSA Advogados

*Luis Fernando Zenid é advogado e sócio da área de Infraestrutura do DSA Advogados

*Renata Rodrigues de Abreu Ferreira é advogada criminalista do DSA Advogados

[1] Agravo em Recurso Extraordinário interposto em face de acórdão proferido pelo TRF da 4ª Região (Tema 1199 da repercussão geral). No caso, o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) ajuizou uma ação civil pública pedindo a condenação de uma advogada, contratada como procuradora para defender em juízo os interesses da autarquia, ao ressarcimento dos prejuízos sofridos em razão de sua suposta atuação negligente. Ela atuou entre 1994 e 1999, e a ação foi proposta em 2006. Na primeira instância, a procuradora foi absolvida, porque o juiz não constatou ato de improbidade administrativa nem prejuízos ao erário. A autarquia foi, então, condenada ao pagamento de multa por litigância de má-fé, custas processuais e honorários advocatícios. O TRF da 4ª região, entretanto, anulou a sentença e determinou a abertura de nova instrução processual, com o entendimento de que, após Constituição Federal de 1988, a pretensão de ressarcimento de danos causados ao erário por atos de improbidade administrativa não prescreveria.

[2] Diploma que alterou a Lei nº 8.429/92, que dispõe sobre improbidade administrativa.

[3] p. 16 do seu voto, em trecho que cita julgado da lavra do Min. Teori Zavascki.

[4] Consoante o qual, “a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu”.

[5] No mesmo sentido dispõe o art. 2º do Código Penal, segundo o qual: “ninguém pode ser punido por fato que lei posterior deixa de considerar crime, cessando em virtude dela a execução e os efeitos penais da sentença condenatória”. Prevê, ainda, expressamente, que “a lei posterior, que de qualquer modo favorecer o agente, aplica-se aos fatos anteriores, ainda que decididos por sentença condenatória transitada em julgado”.

Como bem nos ensina JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO, em Direito constitucional, 6ª ed., Livraria Almedina, 1993, p. 380 e ss.

Fonte: https://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/a-equivocada-decisao-do-stf-a-respeito-da-irretroatividade-das-novas-disposicoes-da-lei-de-improbidade-administrativa/?utm_source=estadao:whatsapp&utm_medium=link

Imagem: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Supremo_Brasil.jpg

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