No primeiro final de semana do passado mês de dezembro de 2022, Messi fez o seu milésimo jogo profissional. Quiseram os deuses (ou terá sido D10s?) [1] que o maior jogador de futebol do século XXI alcançasse tal marca pela seleção de seu país, nas oitavas de final do Mundial do Catar, contra a Austrália, e com direito a mais um tento por ele anotado na competição.

Mas, ao se falar em Argentina, Austrália, camisa 10 albiceleste, capitão, craque, Copa do Mundo… fica quase impossível não vir logo à memória outro hermano, cujas atitudes fora dos gramados ficaram quase tão famosas quanto seus magníficos feitos em campo.

Este texto, apesar de não ser sobre Diego Armando Maradona, partirá de determinado episódio envolvendo-o para desenvolver a presente temática.

O episódio em tela, aliás, há de ser dividido em duas etapas. A Copa de 1994 não é lembrada apenas pelo tetracampeonato da seleção brasileira. O teste positivo de Maradona para um coquetel de cinco drogas (efedrina, norefedrina, pseudoefedrina, norpseudoefedrina e metaefedrina) foi também um evento muito relevante.

Autor do famoso gol com la mano de Dios, marcado nas quartas de final do Mundial de 1986, no México, contra a Inglaterra, o craque argentino ficara alijado de sua seleção por todas as Eliminatórias, vindo a ser convocado pelo treinador, Alfio Basile, apenas para a repescagem, contra a Austrália, em outubro e novembro de 1993.

Embora Maradona, anos mais tarde, tenha insinuado que toda a seleção argentina jogou dopada aquelas duas partidas, por saber que não haveria controle antidopagem — fato, este, que viria a ser desmentido pela Associação de Futebol da Argentina (AFA) [2] —, a verdade é que somente meses depois do dito confronto, por ocasião da partida contra a Nigéria, válida pela segunda rodada do Mundial, viria o resultado analítico adverso de seu teste. A seleção argentina, por sua vez, teve o seu caminho no torneio interrompido logo adiante, pela Romênia, na fase de oitavas de final — exatamente a mesma em que Messi e companhia despacharam os Socceroos no Catar.

Tudo quanto acima narrado tem como gancho a seguinte pergunta, que estes autores já tiveram a oportunidade de analisar, de modo mais aprofundado, na obra Direito Econômico Desportivo (LTr, 2019) [3], mas ora retomam, de modo bastante reduzido, por ocasião da Copa do Mundo de 2022: há de ser o doping criminalizado?

Desde já, vale esclarecer-se que, para além de se estar diante de questão de cariz de política legislativa [4], não se trata de algo uníssono. Do ponto de vista internacional, há países que tipificam determinadas condutas relacionadas ao dopinge.g., a França, a Itália, a Áustria e a Alemanha; outros já o fizeram no passado, mas reviram a sua legislação e extirparam a dopagem do rol de ilícitos criminais, v.g., Portugal e Espanha. O Brasil, por seu turno, não reputa o doping como delito, apesar de o Projeto de Lei nº 728, de 2011, do Senado Federal, ter intentado criminalizar o doping “nocivo”, por dolo ou culpa [5] — todavia, isto não foi adiante.

Nessa senda, a pergunta que fica é: numa compreensão dogmática e pragmática, faz sentido tipificar-se o delito de dopagem (rectius: tipificarem-se condutas atinentes à dopagem) ou a melhor solução é mesmo aquela hodiernamente adotada pelo legislador brasileiro, a saber, a sua não criminalização?

Sem se aprofundar demasiadamente a esse respeito no presente artigo, dado não ser a sede ideal para tanto — aqui, busca-se apenas trazerem-se breves nótulas a respeito, como forma até mesmo de se motivar o debate jurídico-acadêmico e, por que não, colaborar com eventuais discussões político-legislativas —, em que pese a se enxergar certo movimento internacional, capitaneado e/ou chancelado pelos entes desportivos, rumo à criminalização do doping, não se afigura a melhor solução aquela que tipifica o uso de substâncias ou mecanismos dopantes.

Argumentos a favor e contra a tipificação dessas condutas existem os mais variados. O primeiro deles se vincula à saúde, seja esta a pública (Volksgesundheit[6], seja sob a perspectiva individual.

O maior problema de se dar prevalência a esse argumento, ou seja, de se enxergar que o bem jurídico tutelado com a criminalização da dopagem é a saúde — no caso, a saúde pública — reside no fato de que sequer se é possível de fato falar-se na existência de tal bem jurídico coletivo, sendo preferível ater-se, sempre, à “saúde de cada indivíduo concreto” [7], sob pena até mesmo de se fundamentar proibição penal na proteção de bem jurídico fictício — algo absolutamente inadmissível [8].

No que tange à vertente individual da concepção de saúde, a incriminação do autodoping é igualmente questionável: a uma, porque a autolesão não é punível [9]; a duas, porque se estaria diante, nesse caso, de paternalismo injustificado, na medida em que, não havendo carência de autonomia da pessoa afetada, descabido falar-se em intervenção do Direito Criminal na autodeterminação do indivíduo. Igualmente, a falta de ofensividade [10] e alteridade na conduta também demonstram não se sustentar o bem jurídico saúde individual como argumento bastante à tipificação do delito de dopagem.

Já no heterodoping, ou seja, quando terceiro(s) determina(m) a utilização de substância ou método dopante pelo atleta, sendo ele consentido, novamente se estaria diante de paternalismo – aqui, do tipo indireto [11] —, dado que “o destinatário da cominação legal de pena é um terceiro coparticipante da decisão, e não o próprio sujeito que toma a decisão” [12]. Se, contudo, se tratar de heterodopagem não consentida, designadamente em casos de erro ou coação, o vício no consentimento do praticante esportivo será argumento bastante a afastar a sua responsabilidade jurídico-penal.

Outros argumentos que muitas vezes se levantam têm cunho mais econômico, sendo eles, por exemplo, a lealdade e a liberdade concorrencial, na medida em que, quando dopado, o atleta estaria a atuar de modo desleal perante seus adversários e, pois, a desvirtuar a livre competição.

Ocorre que também aqui o melhor entendimento se afigura aquele contrário à criminalização do doping, e por um simples — mas importantíssimo, quiçá o mais relevante — motivo: ausência de dignidade penal, isto é, “de um juízo qualificado de intolerabilidade social, assente na valoração ético-social de uma conduta, na perspectiva da sua criminalização e punibilidade” [13].

Tal conceito vai na esteira do princípio da subsidiariedade e de ultima ratio do Direito Penal, segundo o qual a sua intervenção deste somente tem lugar quando a tutela dos bens jurídicos não for alcançável por meio diverso e menos gravoso à liberdade individual, sob pena de se gerarem, no caso concreto, efeitos secundários, de lesividade desproporcional [14].

Com efeito, ao se sustentar a tutela penal do doping através do bem jurídico (lealdade na ou livre) concorrência, acaba-se constringindo o esporte a meros valores econômico-patrimoniais. Para além de o desporto, definitivamente, não ser apenas isso, essa tal redução sequer justifica, per se, a intervenção penal para fins de criminalizar (condutas concernentes) a dopagem, haja vista que os fins e objetivos perscrutados pelo Direito Concorrencial dizem respeito à eficiência econômica, em prol do consumidor, com a tutela de um bem jurídico da coletividade; porém, a eficiência, independentemente do critério adotado (Princípio de Pareto ou Efeito Kaldor-Hicks), “não possui qualquer idoneidade para o aspecto punitivo do doping no esporte, tanto na seara administrativa quanto na seara penal. Em outras palavras, o parâmetro não possui ligação material” [15].

Em suma, portanto, não se vislumbram bens jurídicos a tutelar a intervenção penal na seara do doping, ou seja, a justificar a tipificação do delito de dopagem em si. Na realidade, a proibição desta no âmbito do esporte decorre de aspectos ético-morais, e, como cediço, “meras concepções morais ou idéias de ordem, ainda que partilhadas por toda a sociedade, não merecem uma valoração penal” [16].

Logo, ante a ausência de bem jurídico a ser protegido pelo Direito Penal, isto é, diante do fato de que, entre todos os bens jurídicos existentes, nenhum deles é passível de ser objeto de escolha do legislador, enquanto valor digno de tutela penal [17], no que concerne à presente temática, a conclusão, em apertada síntese, à qual se chega neste artigo é a de que não se há lugar à tipificação do delito de doping, pelo que anda bem a legislação pátria quando não criminaliza as condutas associadas à dopagem, devendo ficar restritas eventuais medidas jurídicas de combate ao doping a ações de cunho administrativo, preventivas (conscientização) ou repressivas (sanções disciplinares), ou mesmo de âmbito contratual (resoluções dos contratos de trabalho, de patrocínio, etc.).


[1] Entre os diversos apelidos que Maradona ganhou ao longo de sua carreira, estão D10sDieguitoEl Pibe de OroEl DiezDon Diego, entre outros.

[2] GE. Argentina e Austrália já decidiram vaga para a Copa com Maradona em campo e polêmica sobre doping: Ídolo retornou à seleção para jogos da repescagem em 1993 e, anos depois, disse que jogadores tomaram “café turbinado”. Disponível em: https://ge.globo.com/futebol/selecoes/argentina/noticia/2022/12/03/argentina-e-australia-ja-decidiram-vaga-para-a-copa-com-maradona-em-campo-e-polemica-sobre-doping.ghtml. Acesso em: 04 dez. 2022.

[3] CRISAFULLI, Felipe Augusto Loschi; FERREIRA, Renata Rodrigues de Abreu. A criminalização do doping: mais do que uma questão econômica, um problema de dignidade jurídico-penal. In: CRISAFULLI, Felipe Augusto Loschi; ANJOS, Leonardo Fernandes dos. Direito Econômico Desportivo. São Paulo: LTr, 2019. p. 72-85.

[4] Afinal, por mais reducionista que se possa ser, aqui vale a máxima de que crime é o que a lei diz que é, sendo, pois, a criminalização verdadeiro ato de poder.

[5] A criminalização do doping dar-se-ia nos seguintes moldes: ‘Dopping [sic] nocivo – Art. 10. Ministrar substância ou droga proibida pela organização dos eventos, com vistas a prejudicar o desempenho de atleta ou a sua recuperação física: Pena – reclusão, de 2 (dois) a 6 (seis) anos, e multa. § 1º Na mesma pena incorre quem vende a substância ou droga proibida pela organização dos eventos, sabendo da destinação prevista no caput deste artigo. § 2º. Se a dopagem é culposa: Pena: detenção, de 1 (um) a 6 (seis meses). § 3º. Se a dopagem é culposa, a pena é aumentada de 1/3 (um terço), se a conduta resultar de inobservância de regra técnica de profissão, arte ou ofício, ou se o agente omite socorro imediato à vítima, não busca reduzir os efeitos do seu ato ou se evade”.

[6] A saúde pública, enquanto bem jurídico, subdivide-se em duas vertentes, a saúde pública coletiva, que corresponde à soma das saúdes de todos os indivíduos, e a supraindividual, que enxerga a saúde de maneira global e superior, “como um conjunto de condições positivas e negativas que possibilitam o bem-estar das pessoas”. ATIENZA MACÍAS, Elena. ¿Dopaje y Salud Pública? La difícil y discutida identificación del bien jurídico protegido en el delito de dopaje. DS: Derecho y Salud. Valencia, v. 26, n. extra 1 (XXV Congreso 2016: El avance de las Ciencias de la Salud y las incertidumbres del Derecho), p. 187, 2006. Tradução livre.

[7] GRECO, Luís. Sobre a legitimidade da punição do autodoping nos esportes profissionais In: ROXIN, Claus; GRECO, Luís; LEITE, Alaor. Doping e Direito Penal. São Paulo: Atlas, 2011. p. 53.

[8] ROXIN, Claus. Estudos de Direito Penal. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. p. 50-51.

[9] Nesse sentido, a justificativa para a legislação alemã, por exemplo, punir o esportista quando este tem em sua posse substâncias dopantes decorreria de indício de comercialização (presunção de venda), cfr.: Id. Doping e Direito Penal. In: ROXIN, Claus; GRECO, Luís; LEITE, Alaor. Doping e Direito Penal. São Paulo: Atlas, 2011. p. 33.

[10] Nesse sentido, “a ofensividade consiste em uma barreira ao poder do legislador, vinculando-o ao crime como lesão ou perigo de lesão ao bem jurídico”. SANTOS, Daniel Leonhardt dos. Ofensividade e Bem Jurídico-Penal: conceitos e fundamentos do modelo de crime como ofensa ao bem jurídico-penal. Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo, v. 121, p. 14, jul./ago. 2016.

[11] Fala-se em paternalismo indireto no Direito Penal quando este é utilizado “para proibir comportamentos que auxiliam um outro a, intencionalmente, lesionar-se”. HIRSCH, Andrew von. Paternalismo Direto: Autolesões devem ser punidas penalmente? Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo, v. 67, p. 11, jul./ago. 2007.

[12] GRECO, Luís. Op. cit. p. 61.

[13] ANDRADE, Manuel da Costa. A “Dignidade Penal” e a “Carência de Tutela Penal” como referências de uma doutrina teleológica-racional do crime. Revista Portuguesa de Ciência Criminal. Lisboa, ano 2, v. 2, p. 184, abr./jun. 1992. Grifos no original.

[14] Ibid. p. 186.

[15] DAVID, Décio Franco. Doping em Direito Penal: existe um bem jurídico a ser tutelado? Revista Liberdades. São Paulo, n. 10, p. 57, mai./ago. 2012, nota de rodapé n. 82.

[16] HASSEMER, Winfried. Direito Penal: Fundamentos, Estrutura, Política. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2008. p. 36.

[17] “Os bens jurídico-penais não são – ou, ao menos, não devem ser – criados pelo direito. A difícil tarefa do direito penal não está, definitivamente, na sua produção, mas no seu adequado ‘reconhecimento'”. D’AVILA, Fábio Roberto. Aproximações à teoria da exclusiva proteção de bens jurídicos no direito penal contemporâneo. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, ano 17, n. 80, p. 21, set./out. 2009.

Fonte: https://www.conjur.com.br/2023-jan-14/crisafulli-ferreira-nao-criminalizacao-doping

Foto: Elements Envato

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